: : : Principal : : : Histórico : : : E-mail : : : Twitter : : :


Na mídia

22 setembro 2006

O sal da terra

Diante de tanta falta de ética que vemos na política e no poder, vale uma reflexão sobre este trecho de um sermão de Padre Antônio Vieira, de 1654. Basta trocar pregadores por políticos e ouvintes por eleitores:

“Diz Cristo, falando aos pregadores, vós sois o sal da terra, porque quer que façam na terra, o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa dessa corrupção?

Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar.

Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber.

Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem.

Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si, e não a Cristo; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites.”

(Sermão de Santo Antônio, proferido em São Luís do Maranhão, em 1654, também conhecido como sermão aos peixes, publicado no Tomo VII dos Sermões do Padre Antônio Vieira).

17 setembro 2006

O velho pintor

Era um velho pintor japonês, que ia completar 88 anos e morava num bairro de classe média paulistano, sem qualquer glamour. Fui entrevistá-lo por conta de uma matéria especial sobre os festejos dos 80 anos de imigração japonesa no Brasil – e ele era o único sobrevivente do primeiro navio que desembarcou ja­po­ne­ses no início do século 20 no porto de Santos.

A casa era modesta. Um sobrado; dois, no máximo três quartos. A sala tinha uma estante com televisão, três-em-um e alguns bibelôs ja­poneses (nem sei se aqueles bonequinhos redondos podem ser chamados de bibelôs), um sofá de couro ar­ti­ficial surrado, uma escada junto à pa­rede estilo anos setenta, com aque­les ferros coloridos que vão do piso de cada degrau ao teto. Ao lado, um corredor que levava à cozinha.

Nas paredes, muitos de seus quadros. O ateliê ficava no quar­tinho dos fundos, mas não me levou até lá, por causa da bagunça. Mos­trou-me os exemplares pendurados na sala e as reproduções de um li­vro publicado duas décadas antes por uma associação beneficente da co­­munidade japonesa. Suas telas retratavam o trabalho na lavoura, o nas­cer e pôr-do-sol no centro-oeste paulista, a vida nas colônias agrí­co­las, os rostos com olhos puxados cheios de tristeza e desilusão.

Ele falava com um forte sotaque, apesar dos 80 anos morando no Brasil. Falou-me de poucas lembranças daquela época. As pinturas eram mais influência das histórias de seus pais e tios do que re­mi­niscências próprias. Tinha menos de oito anos quando chegou a esta ter­ra em que as pessoas não possuíam pele amarela, nem olhos pu­xa­dos, e não entendiam sua língua. Comiam um arroz esquisito e tinham hábitos bem diferentes dos da sua gente. Não lembrava quanto tempo custou a aprender a língua dos gaigins, mas lembrava que, junto com ela, aprendera a jogar bola e a torcer pelo Marília Atlético Clube.

Apesar do sofrimento dos pais na lavoura de café, e talvez jus­tamente por isso, teve sua infância preservada e amava o time do MAC.

Suas telas retratam também a vida na cidade interiorana nos anos 40 e o rosto sempre lindo da mulher amada. Não importa se ela realmente é bonita; importa como você a vê. Se for com amor, ela pa­recerá a mais bela do mundo no retrato, ensina o mestre.

A musa de olhos puxados aparece nas telas na flor da juventude; mulher feita na janela da casa; mãe protetora dos filhos; mulher ma­dura passeando por um bosque; e como uma velha repleta de sabedoria e dignidade. Os olhos dele marejavam ao ver no livro os re­tratos da mu­­­lher. Lá se iam quase dez anos sem ela, mas não sem sua lem­bran­ça, todos os dias, até o fim da vida, como ambos haviam prometido um ao outro. Deus quis que coubesse a ele cumprir a promessa.

Nas paredes não vi nenhum retrato dela. Ele percebeu o meu re­pa­­ro, mas não comentou nada – e eu não perguntei, em respeito ao sen­­timento dele. O velho pintor encerrou o assunto com a frase: “Quando se ama, a vi­da ganha sentido”.

O sábio pintor resumia sua vida como uma escada com infinitos degraus, que se sobe diariamente. Quando se é jovem, tem-se a impressão de que se pode pular de dois em dois, ou de três em três degraus, para se chegar mais rapidamente ao topo. “Ah, o topo...”, suspirou. Mas quando se está velho, aprende-se que cada degrau tem a sua importância para a escadaria e que, se você pular um sequer, o conhecimento daquele pode vir a fazer falta quando se estiver lá em cima – e então pode-se levar um enorme tombo.

Além disso, sua escada sobe em paralelo a várias outras, por on­de passam outras pessoas, mais novas ou mais velhas. E essas sempre podem lhe ensinar alguma coisa ou aprender algo com você. “Eu tenho um novo amigo de 18 anos que vem três vezes por semana me ensinar a mexer no computador”, disse-me. O velho pintor não sabia se teria ou não tempo de usar esse conhecimento, mas julgou que precisava aprender e estava aprendendo.

Enquanto fazia as anotações para a matéria, fiquei olhando-o com profunda admiração. Ele contou que vol­tou uma única vez ao Japão, já com quarenta anos, e teve a sen­sa­ção de que sua verdadeira pátria ficava do lado de cá do planeta.

Eu continuei a admirá-lo. Eu que nunca tive o dom do desenho, que não emigrei com minha família para um país estranho, que não so­fri o preconceito por ter uma pele e os olhos diferentes dos moradres des­se país. Eu que apenas tinha como ofício coletar e relatar aos ou­tros informações, estava diante de uma esplêndida lição de vida.

Um ano mais tarde, li uma notinha de jornal dizendo que o último dos imigrantes pioneiros japoneses havia morrido. Lem­brei-me de sua casa, de seu jeito de falar, de seus quadros, de sua mu­sa. Em vez de chorar por ele, co­me­­cei a prestar mais atenção a cada degrau da minha escada.

Renato Delmanto