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Na mídia

01 outubro 2010

O que leva um intelectual a votar em Netinho?

Há um certo consenso entre analistas e cientistas políticos de que as eleições 2010 provavelmente sejam as de pior nível já vistas, desde o início do processo de redemocratização do país. E não se trata de apelação por parte dos candidatos, de baixarias de campanha ou de golpes baixos de marqueteiros. Trata-se da quase absoluta falta de debate político durante a campanha eleitoral.

No caso da eleição majoritária, de um lado temos o governo soberano em sua popularidade que se julga acima do bem e do mal, não admitindo (ou, no mínimo, desaprovando) a existência de críticos, seja no Parlamento, seja na imprensa. De outro lado, uma oposição que deixou de cumprir seu papel nos últimos anos (principalmente durante o segundo mandato do presidente Lula) e que agora está sendo penalizada pelos eleitores, por conta dessa omissão. Há ainda a terceira via verde, que se apresenta como a proposta mais estruturada de um governo moderno, mas que aparentemente demorou, durante a campanha, a empolgar uma parcela mais significativa do eleitorado. A quarta opção, socialista, foi uma das que mais sofreu com a falta de debate político: suas propostas de reformas radicais no sistema político e econômico caíram na vala comum do folclórico; o candidato soou, principalmente nos debates da TV, onde tinha mais tempo para se expor, como uma espécie de “Tiririca” da esquerda legítima. Marcou mais como anedota do que como alternativa ao modelo capitalista existente.

Mas não é de eleições majoritárias que se quer tratar aqui. Pois a falta de um debate político prejudica principalmente o Legislativo. Qualquer cidadão consciente sabe da importância do Parlamento para a consolidação da democracia. As gerações mais novas, nascidas após o fim da ditadura, não sabem o que é viver sob um regime de exceção. A oposição no Congresso foi um dos primeiros alvos da ditadura militar, assim como a prerrogativa presidencial de fechar o Congresso, Assembleias e Câmaras Municipais foi a primeira medida do AI-5.

Por que a tribuna do Parlamento incomoda tanto aos poderosos? Porque, no equilíbrio dos poderes de uma democracia, aquele microfone é um espaço onde a liberdade de expressão e opinião está garantida para os legítimos representantes da sociedade. Qualquer tentativa de impedi-los de falar e de denunciar será um atentado à democracia. É função dos parlamentares cobrar dos mandatários e dos responsáveis pelas instituições o cumprimento da Constituição.

Num regime democrático, quando o Congresso deixa de cumprir essa função, o cidadão perde um importante ponto de referência. Quando, além disso, o debate político simplesmente inexiste na campanha eleitoral estamos diante de um risco enorme para a democracia. Porque, sem o debate de ideias políticas, o eleitor vai ás urnas para votar sem elementos para discernir o trigo do joio, e o país corre o risco de serem eleitos representantes no Congresso sem a mínima condição de zelar por seus interesses e defender seus direitos. E o joio pode acabar prevalecendo.

No Senado, a situação piora ainda mais, pois os dois representantes eleitos terão mandato de oito anos. No caso de São Paulo, o pagodeiro e apresentador de TV Netinho de Paula desponta como forte candidato. Nada contra a figura dele em si, mas me questiono o ele pode agregar ao debate legislativo na Câmara Alta. Não consigo imaginar Netinho integrando uma Comissão como a de Constituição e Justiça ou de Meio Ambiente.

A quem interessa senador despreparado ocupando uma cadeira no plenário em Brasília? A resposta é simples: interessa aos donos do poder. Pois são esses parlamentares sem opinião que garantem a perpetuação no poder e garantem a maioria para inviabilizar qualquer movimento da oposição contrário aos interesses do governo.

Na crise surgida no Senado a partir da descoberta dos atos secretos, muito se falou sobre a necessidade de reformulação da Casa. Questionou-se também a legitimidade dos “suplentes”, pessoas sem qualquer representação política que ocupam as vagas de políticos eleitos (e nomeados para cargos no Executivo). Na prática do senado, esses suplentes funcionam como tropa de choque dos donos do poder. Tanto que a crise dos atos secretos acabou em pizza.
Netinho é um exemplo dessa espécie de inocente útil ao governo no Congresso. Claro que sua votação se deve ao seu prestígio como artista e ao apoio incondicional do presidente da República à sua candidatura. Mas é difícil crer que o cantor-apresentador contribua para aprimorar o debate político. Imagine Netinho de Paula na tribuna debatendo com um Pedro Simon ou um Tasso Jereissati. Não dá para imaginar.

A presença de alguém como Netinho no Congresso interessa especificamente ao seu principal cabo eleitoral, o presidente da República, o atual dono do poder no auge de seu pedestal de popularidade. Importa ao governo ter a maior bancada, que não seja para “eliminar” a oposição, como o presidente deixou escapar recentemente em um ato falho, mas pelo menos sufocá-la ao máximo. Durante os oito anos em que o pagodeiro poderá ficar no Congresso, será peça importante no projeto governista de perpetuação no poder. Será escalado para comparecer ao Senado sempre que houver sessões de votação importantes para o governo, para dar quórum. Por gratidão, deve comparecer sempre que chamado.

Nesse contexto, o que mais surpreende é que alguns dos petistas históricos, da chamada ala intelectual do partido, estejam convencidos de que devem votar em Netinho para o Senado. O que leva um intelectual a ter essa convicção? Será que ele realmente acredita que isso seja o melhor para a democracia do país? Será que não seria melhor até para o governo que houvesse um representante paulista no Senado de melhor nível, que possibilitasse um debate de ideias mais consistente? Esse intelectual petista, que em algum momento lutou ou defendeu a democracia, realmente acredita que isso seja o melhor para o Brasil?

Será que esse intelectual acredita, como o presidente, que quem não está a favor do governo faz parte da turma do contra que fica “inventando” crise o tempo todo? E que, diante disso, é melhor atender ao pedido do presidente (ou seria uma ordem?) e votar no “melhor candidato” para o projeto partidário?

Pode-se compreender que essa postura a favor da perpetuação no poder e de certo desdém à democracia e às liberdades individuais parta de alguns políticos de formação “pragmática” de esquerda, que simpatizam com a ditadura do proletariado. Mas não combina com qualquer pessoa que compartilhe minimamente o ideário democrático.

Será que um intelectual fica em paz com sua consciência democrática ao defender para São Paulo um senador como Netinho?