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Na mídia

06 novembro 2006

Os filhos da Santa Casa



DAS MEMÓRIAS DE SEUS MAIS DE 130 ANOS, a Santa Casa de São Paulo guarda uma em especial: um objeto que representa perfeitamente a “misericórdia” do hospital mantido pelas irmãs. Trata-se da Roda da Vida, ou Roda dos Expostos, um cilindro oco de madeira de lei, onde mães deixavam seus filhos bebês, por falta de condições de criá-los.

A Roda da Vida ficava instalada no muro dos fundos da Santa Casa. As mães colocavam os bebês no interior do cilindro, giravam-no 180 graus para que a abertura ficasse posicionada para dentro do muro e depois toavam uma campainha que soava no dormitório das freiras. Geralmente as mães queriam manter-se no anonimato, e informavam nos bilhetes apenas o nome da criança, a data de nascimento e se o bebê tinha ou não sido batizado.

A Roda foi implantada em 1925 e acolheu milhares de crianças (então chamados, de forma politicamente incorreta, de “enjeitadas”), até ser desativada em 1948. As crianças eram criadas e educadas pelas freiras num pavilhão exclusivo para os “expostos” ou “caídos”. Depois, eram transferidas para o Asilo do Pacaembu.

Nos livros de registro da Santa Casa, guarda- dos cuidadosamente na Biblioteca da Irmandade, pode-se ler a história de cada criança caída na Roda, com incrível riqueza de detalhes. Foram décadas de caridade, embora a estatística prove que a eficácia apenas relativa desse acolhimento: cerca de 30% das crianças abandonadas na Roda morriam, muito em razão de doenças congênitas, já que naquele início do século não havia uma boa política de saúde pública. Os bebês chegavam na Santa Casa com pneumonia, subnutrição, até sífilis.

Por outro lado, as cartas e bilhetes deixados pelas mães das crianças surpreendem pela carga emocional que carregam e pelo bom português. Era uma época em que mesmo as pessoas humildes tinham muito mais instrução do que hoje.

 Os bilhetes das mães 

Algumas mães diziam seus nomes e prometiam voltar buscar as crianças – o que raras vezes ocorria. Outras escreviam as cartas como se o autor fosse o próprio bebê. “Sou filha de um pecado que não tem perdão. Filha de gente humilde, não sou batizada”, diz um bilhete escrito em letras de forma deixado junto à menina Maria José, em 2 de maio de 1922. “Minha mãe repudia-me, mas alguma alma generosa poderá querer saber o meu destino. Deus me guie.”

“Chamo-me Antonio, sou órfãozinho de pai, porque ele abandonou minha mãe. Ela é muito boa e me quer muito bem, mas não pode tratar de mim. Estou magrinho assim porque ela não tem leite e precisa trabalhar. Por isso me pôs aqui para as irmãs me cuidarem” (27 de junho de 1922) 

 Muitas mães acreditavam que um dia voltariam para buscar seus rebentos. Deixavam seus nomes e o do pai, dos padrinhos de batismo, ou ainda lembranças como correntinhas ou santinhos de papel, alguns cortados ao meio – para que metade ficasse com o bebê e a outra metade com a mãe, para que fossem reunidos no futuro. Algumas das mães que voltaram ficavam sabendo que os filhos tinham morrido.

Todos os bilhetes deixados junto aos bebês na Roda dos Expostos, assim como os livros com os registros das crianças, estão guardados no Museu da Santa Casa. Os santinhos também estão guardados nos livros de registro da Santa Casa.

Num dos bilhetes, de 19 de julho de 1917, a mãe escreveu sobre o filho Vicente: “Ponho meu filho na Roda por motivo de miséria. Se algum dia Deus me ajudar e eu possa sustentá-lo, virei buscá-lo. Peço a caridade de guardar este papel”. Já a menina Margarida, deixada na Roda em 8 de junho de 1916, recebeu a seguinte promessa de sua mãe, grafada em letras trêmulas: “Não podendo sustentar esta menina, entrego à Santa Casa de Misericórdia. Sou brasileira, sou pobre, portanto confio na benevolência da Santa Casa para que Deus dê saúde e eu possa buscá-la daqui a 18 meses”. Consta nos livros que a mãe não reapareceu e Margarida foi adotada (ou “perfilhada”, como se dizia na época), em outubro de 1918.

“Filho, não posso agasalhar-te a vida. (...) Pelas chagas de Cristo, peço guardar este papel junto com meu filho que eu, se Deus me der vida e saúde, daqui a alguns meses darei o que puder para reencontrá-lo. Peço não o darem sem que levem uma carta igual a esta e um retrato também.” (22 de maio de 1922) 

Um dos maiores problemas das crianças deixadas na Roda dos Expostos, nas primeiras décadas do século, era a subnutrição, principalmente por conta da miséria dos pais e da falta de leite materno. Àquela época, a Irmandade usava índias de uma aldeia no bairro do Jabaquara como amas de leite dos expostos. Havia também amas de leite voluntárias da Santa Casa, que ficavam com os bebês em suas casas e os levavam uma vez por semana para acompanhamento médico na Santa Casa. Não foram poucos os casos em que as próprias amas de leite adotaram as crianças. A adoção era autorizada por um diretor da Santa Casa ou pelo próprio Mordomo (administrador) do Asilo dos Expostos, onde as crianças ficavam até os 12 anos.

No Asilo dos Expostos do Pacaembu, instalado num dos morros ao lado do Estádio do Pacaembu, com entrada pela Rua Angatuba, as crianças ficavam até os 12 anos. Após essa idade, caso não tivessem sido adotados, a maior parte deles ia para onde é hoje a Fundação Casa no Tatuapé (a antiga Febem), enquanto uns poucos felizardos iam para o Colégio Salesiano São José, em Campinas.

Em 1934, o diretor dos “mordomos” do Asilo dos Expostos, o Dr. Sampaio Vianna, apresentou ao Conselho da Irmandade um relatório sobre os expostos em que cobrava uma política pública com relação ao problema da adoção: “A sorte das criancinhas abandonadas deve interessar a toda a gente que tenha coração. Não é possível que em uma cidade como São Paulo perdure um sistema de proteção que, devido a circunstâncias especiais, a Santa Casa, com vergonha e tristeza de seus diretores, tem sido obrigada a manter até agora”.

Vianna morreu dois anos depois, foi substituído na função pelo Dr. Guilherme Dumont Villares, e acabou homenageado pela Irmandade, que decidiu mudar o nome do Asilo do Pacaembu para Asilo dos Expostos Sampaio Vianna.

Em 1948, a Roda da Vida foi desativada na Santa Casa, após o Estado ter aprimorado os mecanismos de adoção. Segundo as irmãs que presenciaram os últimos anos de funcionamento da Roda, nos anos seguintes à desativação, muitos bebês ainda foram abandonados nos jardins e nos banheiros da Santa Casa.

Apesar das políticas “oficiais” de adoção, o problema cresceu na mesma proporção (ou talvez mais) que a população da cidade de São Paulo. E o Dr. Sampaio Vianna teria hoje mais razões para ficar indignado.