Que espetáculo Augusto Boal montaria após as eleições de 2010?
Não se via uma campanha presidencial com debates tão mornos e com ânimos dos correligionários tão acirrados desde 1989, quando Collor e Lula disputaram o segundo turno na primeira eleição direta para o Planalto depois de 25 anos de ditadura. Essa história já foi contada sob diversas óticas – por exemplo a da cobertura da grande imprensa, majoritariamente favorável a Collor, está muito bem retratada no livro “Notícias do Planalto”, de Mario Sergio Conti.
A poucos dias daquela eleição, tudo indicava que Lula ganharia. Àquela época, Lula aglutinava em torno de si o que melhor havia representando a esquerda e a social-democracia de centro-esquerda da política da época. Nomes como Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Miguel Arraes, entre tantos outros, subiram no palanque de Lula para apoiar a candidatura que simbolizava a opção mais democrática e progressista ao modelo conservador e elitista representado por Collor.
Collor tinha a seu lado alguns representantes do que de pior existia na política de então, entre eles Renan Calheiros e Antônio Carlos Magalhães. Eles representavam a velha política, a política dos favores, dos coronéis nordestinos, que “ganhavam” votos do povo graças pequenas benesses sociais, sem o menor interesse em efetivamente resolver os problemas mais graves do país. O paliativo oficial visava tão-somente aliviar o problema, e jamais tentar solucioná-lo, pois a perpetuação dos males garantia aos barões um novo capital político nas eleições seguintes. Possibilitava a manutenção de seus currais eleitorais.
Fernando Collor representava tudo isso.
Já Lula era o ex-sindicalista, que simbolizava o pensamento de esquerda, a busca da justiça social, a renovação da política, a derrota dos coronéis retrógrados.
Collor venceu, com 4 milhões de votos a mais que Lula. Afora o lamentável episódio da ex-namorada de Lula que apareceu na campanha do adversário, a reta final da campanha em São Paulo foi marcada por uma inesperada adesão voluntária de setores da classe média à candidatura de Collor. Os adesivos nos carros proliferaram, pessoas saíram às ruas com bandeiras, e a boca-de-urna collorida ganhou um auxílio luxuoso.
Lula recebeu 31 milhões de votos. Brancos e nulos somaram 4 milhões. E as abstenções chegaram a 11,8 milhões.
A proposta de Boal
No ano seguinte, o dramaturgo e diretor Augusto Boal, principal expoente do chamado “teatro do oprimido”, resolveu traduzir a sua indignação com a derrota de Lula, de forma tão apertada e para um oponente tão conservador, que criou o espetáculo “Somos 31 milhões... e agora?”. Na peça, um militante tentava convencer os “companheiros” de campanha a transformar os comitês em centros culturais.
Passados 20 anos, a peça torna-se ainda simbólica de uma realidade que vivemos hoje na política brasileira. Trata-se quase de uma caricatura do cenário político de 1989.
Lula elegeu-se presidente duas vezes, termina seu segundo mandato como o mandatário mais bem avaliado pela população e o Brasil vive um momento de prosperidade econômica nunca antes visto em sua história. Mas aquele sonho de democracia, de justiça social, de visão política esquerdista, tudo foi deixado de lado em nome da “governabilidade”, da “estabilidade” ou de um simples projeto de perpetuação no poder.
O teatro do oprimido de Boal pretendia a democratização dos meios de produção artística, que permitisse o acesso das camadas mais pobres à cultura. Defendia também a transformação da sociedade, por meio da conscientização e do diálogo.
Os avanços sociais do governo Lula, tão alardeados durante a campanha, estão longe de corresponder ao sonho de Augusto Boal. O próprio Bolsa Família, proclamado pelo governo como o maior programa do mundo de distribuição de renda, em vez de ser instrumento de transformação da sociedade, tornou-se uma versão muito mais inteligente da velha “chantagem” eleitoral que os coronéis da velha política faziam.
Quando foi pensado, o “Fome Zero” era uma proposta de transformação da sociedade, de construção da cidadania. Ao optar pelo modelo assistencialista do Bolsa Família, o governo petista escolheu o caminho mais cômodo. O próprio Frei Betto, em entrevista ao Estadão no início de 2009, definiu o programa original pensado por ele e por Betinho como uma proposta mais abrangente e que possuía caráter “emancipatório”. Já o Bolsa-Família tem “caráter compensatório”. “Até hoje não se descobriu a porta de saída das famílias que dele dependem”, disse Frei Betto. (Leia a entrevista em http://migre.me/1Ro9k.)
Pois o Brasil sonhado por Betinho e por Augusto Boal é muito diferente do Brasil mostrado nas propagandas do governo. Vivemos hoje, segundo elas, no país da prosperidade, do número recorde de empregos com carteira assinada, das grandes obras de infra-estrutura, credor do FMI, que fala de igual para igual com qualquer outro país.
Mas esse governo tem como aliados figuras que representavam, em 1989, tudo de pior que havia na política – como Collor, Sarney, Renan Calheiros... Eles mudaram ou nosso conceito mudou? Nada disso. A situação é que piorou: a esquerda virou direita, o centro esquerda virou centro, e tudo parece igual. E desanimador.
A máquina estatal nunca esteve tão aparelhada como nos últimos oito anos, os casos de corrupção e tráfico de influência pululam, os órgãos responsáveis pela gestão da ética pública se curvam às vontades dos governantes acusados, as agências reguladoras são apenas peças figurativas. As empresas públicas são usadas para fazer negócios escusos com empresas de parentes dos governantes, dos companheiros de partido e dos amigos. Como nunca antes na história desse país.
Domingo 31/10 é dia de reflexão sobre qual país nós queremos que o Brasil seja a partir de 2011. Se uma republiqueta de companheiros com um discurso populista, ou se um país, se não de esquerda, pelo menos que tenha um pouco mais de cuidado com a coisa pública. E com um governo que trabalhe para o bem de todos, não apenas de um partido ou dos amigos.
Betinho morreu em 1997. Boal, em 2009.
Mas fica a pergunta: se Boal estivesse vivo, que espetáculo ele faria após essas eleições, em que o projeto de Brasil de mais de 40 milhões de brasileiros sairá derrotado das urnas?
A poucos dias daquela eleição, tudo indicava que Lula ganharia. Àquela época, Lula aglutinava em torno de si o que melhor havia representando a esquerda e a social-democracia de centro-esquerda da política da época. Nomes como Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Miguel Arraes, entre tantos outros, subiram no palanque de Lula para apoiar a candidatura que simbolizava a opção mais democrática e progressista ao modelo conservador e elitista representado por Collor.
Collor tinha a seu lado alguns representantes do que de pior existia na política de então, entre eles Renan Calheiros e Antônio Carlos Magalhães. Eles representavam a velha política, a política dos favores, dos coronéis nordestinos, que “ganhavam” votos do povo graças pequenas benesses sociais, sem o menor interesse em efetivamente resolver os problemas mais graves do país. O paliativo oficial visava tão-somente aliviar o problema, e jamais tentar solucioná-lo, pois a perpetuação dos males garantia aos barões um novo capital político nas eleições seguintes. Possibilitava a manutenção de seus currais eleitorais.
Fernando Collor representava tudo isso.
Já Lula era o ex-sindicalista, que simbolizava o pensamento de esquerda, a busca da justiça social, a renovação da política, a derrota dos coronéis retrógrados.
Collor venceu, com 4 milhões de votos a mais que Lula. Afora o lamentável episódio da ex-namorada de Lula que apareceu na campanha do adversário, a reta final da campanha em São Paulo foi marcada por uma inesperada adesão voluntária de setores da classe média à candidatura de Collor. Os adesivos nos carros proliferaram, pessoas saíram às ruas com bandeiras, e a boca-de-urna collorida ganhou um auxílio luxuoso.
Lula recebeu 31 milhões de votos. Brancos e nulos somaram 4 milhões. E as abstenções chegaram a 11,8 milhões.
A proposta de Boal
No ano seguinte, o dramaturgo e diretor Augusto Boal, principal expoente do chamado “teatro do oprimido”, resolveu traduzir a sua indignação com a derrota de Lula, de forma tão apertada e para um oponente tão conservador, que criou o espetáculo “Somos 31 milhões... e agora?”. Na peça, um militante tentava convencer os “companheiros” de campanha a transformar os comitês em centros culturais.
Passados 20 anos, a peça torna-se ainda simbólica de uma realidade que vivemos hoje na política brasileira. Trata-se quase de uma caricatura do cenário político de 1989.
Lula elegeu-se presidente duas vezes, termina seu segundo mandato como o mandatário mais bem avaliado pela população e o Brasil vive um momento de prosperidade econômica nunca antes visto em sua história. Mas aquele sonho de democracia, de justiça social, de visão política esquerdista, tudo foi deixado de lado em nome da “governabilidade”, da “estabilidade” ou de um simples projeto de perpetuação no poder.
O teatro do oprimido de Boal pretendia a democratização dos meios de produção artística, que permitisse o acesso das camadas mais pobres à cultura. Defendia também a transformação da sociedade, por meio da conscientização e do diálogo.
Os avanços sociais do governo Lula, tão alardeados durante a campanha, estão longe de corresponder ao sonho de Augusto Boal. O próprio Bolsa Família, proclamado pelo governo como o maior programa do mundo de distribuição de renda, em vez de ser instrumento de transformação da sociedade, tornou-se uma versão muito mais inteligente da velha “chantagem” eleitoral que os coronéis da velha política faziam.
Quando foi pensado, o “Fome Zero” era uma proposta de transformação da sociedade, de construção da cidadania. Ao optar pelo modelo assistencialista do Bolsa Família, o governo petista escolheu o caminho mais cômodo. O próprio Frei Betto, em entrevista ao Estadão no início de 2009, definiu o programa original pensado por ele e por Betinho como uma proposta mais abrangente e que possuía caráter “emancipatório”. Já o Bolsa-Família tem “caráter compensatório”. “Até hoje não se descobriu a porta de saída das famílias que dele dependem”, disse Frei Betto. (Leia a entrevista em http://migre.me/1Ro9k.)
Pois o Brasil sonhado por Betinho e por Augusto Boal é muito diferente do Brasil mostrado nas propagandas do governo. Vivemos hoje, segundo elas, no país da prosperidade, do número recorde de empregos com carteira assinada, das grandes obras de infra-estrutura, credor do FMI, que fala de igual para igual com qualquer outro país.
Mas esse governo tem como aliados figuras que representavam, em 1989, tudo de pior que havia na política – como Collor, Sarney, Renan Calheiros... Eles mudaram ou nosso conceito mudou? Nada disso. A situação é que piorou: a esquerda virou direita, o centro esquerda virou centro, e tudo parece igual. E desanimador.
A máquina estatal nunca esteve tão aparelhada como nos últimos oito anos, os casos de corrupção e tráfico de influência pululam, os órgãos responsáveis pela gestão da ética pública se curvam às vontades dos governantes acusados, as agências reguladoras são apenas peças figurativas. As empresas públicas são usadas para fazer negócios escusos com empresas de parentes dos governantes, dos companheiros de partido e dos amigos. Como nunca antes na história desse país.
Domingo 31/10 é dia de reflexão sobre qual país nós queremos que o Brasil seja a partir de 2011. Se uma republiqueta de companheiros com um discurso populista, ou se um país, se não de esquerda, pelo menos que tenha um pouco mais de cuidado com a coisa pública. E com um governo que trabalhe para o bem de todos, não apenas de um partido ou dos amigos.
Betinho morreu em 1997. Boal, em 2009.
Mas fica a pergunta: se Boal estivesse vivo, que espetáculo ele faria após essas eleições, em que o projeto de Brasil de mais de 40 milhões de brasileiros sairá derrotado das urnas?
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home