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18 novembro 2010

Memória empresarial: é preciso coragem para resgatar o passado

No mundo empresarial, ganha cada vez mais relevância o trabalho de resgate da memória. Livros, exposições e eventos comemorativos de efemérides já têm sido produzidos há vários anos pelas organizações. Mas uma parcela relevante das empresas ainda não possui um trabalho estruturado de resgate da memória, que seja utilizado como efetiva ferramenta de comunicação. Essa “história oral”, baseada em narrativas daqueles que foram ou são diretamente envolvidos com a empresa, enriquece muito o trabalho de resgate da memória empresarial. Sem esses relatos “verdadeiros”, que suscitam análises dos processos sociais do presente e do passado, o resgate da trajetória de uma companhia corre o risco de tornar-se burocrático (como de fato o são algumas publicações comemorativas). Essas percepções e interpretações pessoais dão vida aos episódios que marcaram a evolução de uma organização.


O relato baseado em contadores de histórias remonta aos tempos imemoriais. A tradição oral das religiões é um exemplo. Em nenhuma passagem da Bíblia está escrito que os Reis Magos se chamavam Baltazar, Melchior e Gaspar. Porém, a tradição oral assim os denomina e assim nos ensinou. Durante o chamado “Exílio babilônico”, no século 500 a.C., o povo judeu lamentava a destruição do Templo e começou a reconhecer os alertas feitos a seus antepassados pelos profetas. Foi quando alguns judeus começaram a reunir e transcrever as tradições orais, e foram elaborados os primeiros livros proféticos do Antigo Testamento. Já no Novo Testamento, Lucas explica, logo na introdução de seu Evangelho, que seu relato foi feito depois de ter “diligentemente” investigado os fatos narrados por “testemunhas oculares” dos episódios, para que as gerações futuras conhecessem “a solidez daqueles ensinamentos” e se perpetuasse uma doutrina cristã. Passados mais de 2 mil anos, o intuito do evangelista foi bem-sucedido.

Uma empresa resgata sua memória institucional com o objetivo de criar ou formar sua reputação. Ao recontar sua história, a empresa reforça sua cultura, suas crenças e seus valores, desperta o desejo de pertencer nos funcionários, e gera credibilidade e confiança na sociedade como um todo. Busca, indiretamente, uma perenidade empresarial. Claro que essa “perenidade” depende também – e muito – do sucesso nos negócios, da capacidade da empresa de inovar e de se reinventar. Depende ainda de uma “licença social” para operar.


Olhar no retrovisor

Uma empresa que ignora o seu passado não inspira confiança no presente, nem atrai talentos que irão garantir o seu futuro. Olhar no retrovisor e enxergar lá atrás os pilares que sustentam o presente é um exercício aparentemente simples. Mas exige vontade política e coragem de rever momentos que, ainda hoje, alguns executivos prefeririam deixar esquecidos. Nesse sentido, o papel do comunicador equivale ao de um catequista: os executivos precisam ser convencidos de que esse trabalho é necessário – mais do que simplesmente “relevante” – para que se atinjam os objetivos de negócio da companhia.

Já as organizações que se dedicam com verdadeiro empenho ao resgate de sua memória, sem medo, irão colher frutos muito positivos no médio e no longo prazo. Seus funcionários – principalmente os jovens entrantes na empresa – irão vivenciar um sentimento de identificação, num primeiro momento, depois de pertencimento e, por fim, de assenhoreamento. Com o tempo, eles “serão” a empresa e vice-versa.

Mas será que o resgate da história tem mesmo esse poder? A memória pode fazer com que as pessoas percebam de forma diferente o mundo, seu país, sua cidade, seu bairro, sua escola ou a empresa em que trabalham?

Proust definiu como memória involuntária aquela capaz de fazer as pessoas reviverem as sensações de momentos específicos do passado, que estavam esquecidos. Cada um de nós vivencia momentos proustianos com maior ou menor frequência.

Hoje, as redes sociais possibilitam que esse resgate da memória seja mais presente. A cada dia é possível reencontrar amigos e colegas que há anos estavam perdidos e, graças ao ambiente virtual, retomar o relacionamento. O simples fato de você, de uma hora para outra, estar diante de fotos de pessoas com quem conviveu há 10 ou 20 anos revive essa memória involuntária adormecida. Seja a quadra da escola primária, um piquenique, uma excursão, uma festa junina, um show, a faculdade, o primeiro emprego. De repente, sensações, aromas, sabores e outros sentimentos tomam conta de nós, apenas ao olhar no computador uma imagem que estava adormecida no passado.

A psicóloga Patricia Geribello Cabral, mestre em gerontologia pela PUC-SP e que há anos se dedica ao resgate da memória como tratamento terapêutico de idosos, diz que “as lembranças têm o passado como conteúdo e podem ser compartilhadas no presente por intermédio da comunicação”. Quando feito de forma elaborada, esse compartilhamento (ou esse processo) gera “a possibilidade de novos arranjos sobre o conteúdo e de continuidade no presente”. Portanto, o resgate de histórias pode contribuir não só para o entendimento de atitudes no presente, como também ajuda na formulação de novos conteúdos para se escrever a história no futuro. É, portanto, um trabalho eminentemente de comunicação.


Letra viva

Esse “trabalho” de comunicação ressalta outra característica da memória resgatada: ela não é nem nunca poderá ser letra morta. Quem assim a enxerga tem uma percepção míope. A empresa que desdenha o resgate de sua memória perde vínculos com seus funcionários, com seus clientes e com a sociedade. Fazer parte da história e, principalmente, sentir-se agente dessa história é uma das mais eficazes formas de engajamento de pessoas em torno de objetivos comuns. Se os funcionários não tiverem esse sentimento, não há ação de comunicação interna que proporcione esse engajamento.

A história – de uma empresa, de uma escola, de um bairro – só é legítima se for contada a partir da história das pessoas que fizeram e que fazem essa empresa, escola ou bairro. A memória é viva porque é baseada em experiências de vida, não em prédios, máquinas ou escritórios. É a memória não de um tempo “kronos”, mas de um tempo “kairós”, como os gregos distinguiam o tempo medido pelo relógio do tempo vivido pelo ser humano.

A empresa que acredita no resgate de sua memória e que efetivamente se dedica a esse trabalho, sem medo, está à frente de seu tempo. Sem trocadilhos.



Turma de alunos do Colégio Caetano de Campos, nos anos 80

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Artigo publicado originalmente no site da Aberje (http://migre.me/2j7uu). OBS: sem a foto acima.
Renato Delmanto é ex-aluno do Colégio Caetano de Campos, em São Paulo.