Democracia, ditadura, direita e esquerda
Não sou sociólogo, nem cientista político, por isso não vou me meter a fazer qualquer análise mais embasada sobre a campanha presidencial de 2006. Mas fato é que fica difícil para qualquer mortal entender que raio de conflito ideológico é esse entre PT e PSDB.
Digo isso porque faço parte de uma geração que nasceu e cresceu durante a ditadura, aprendeu com os pais a importância da democracia e do exercício do voto. Claro que, naquele tempo, era mais fácil de se entender isso. Esta charge, tirada do livro "Aos Trancos e Barrancos", de Darcy Ribeiro, ilustra bem a diferença.
A diferença entre direita (os militares) e esquerda (a oposição civil e os recém-anistiados) era muito mais cristalina - e maniqueísta: "eles" eram do mal e nós, do bem. "Eles" eram corruptos, nós cidadãos honestos. "Eles" eram militares, nós civis.
Assim, ficava fácil saber de que lado deveríamos ficar, nós, pessoas de bem.
O que mudou depois da redemocratização do país? Hoje não existe mais o lado do mal, ao menos personificado pelos militares e pelos políticos de "direita". A eleição polarizou-se entre o partido que nasceu do movimento operário, dos radicais oriundos da clandestinidade e dos intelectuais de esquerda e o partido que nasceu da reunião de ilustres representantes da oposição civil e intelectualizada ao regime militar.
De um lado, um time que reunia no seu nascedouro do líder sindical Lula, um ícone nacional, ao ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, passando pelo jurista Dalmo Dallari; de outro, um partido nascido da costela do MDB (a oposição consentida pelos militares), que reunia desde o governador Franco Montoro e o prefeito Mário Covas, passando pelo ex-líder estudantil José Serra.
Depois da eleição de Fernando Henrique Cardoso - e da aliança de seu governo com algumas das forças mais reacionárias do país, personificadas por ACM - a oposição passou a ser representada pela figura de petistas combativos, sempre alerta e prontos a denunciar quaisquer atos de corrupção, abuso de poder ou negociata envolvendo a coisa pública, principalmente no que se refere às privatizações dos serviços públicos.
A partir disso, a oposição petista passou a satanizar o governo FHC, a ponto de conseguir uma vitória retumbante em 2002, vitória de um partido de esquerda, representante legítimo das camadas mais populares, comandado por um ex-operário.
A nova oposição, satanizada e desprestigiada enquanto ex-governo, teve dificuldades em encontrar seu mote de crítica, diante da unanimidade que se instalou, junto à população, em relação ao governo petista, nos seus primeiros meses de Planalto. Só veio encontrá-lo quando o próprio PT, no exercício do poder, demonstrou que era tão ou mais corruptível que os governos anteriores.
Isso fez com que se criasse um nó na cabeça das pessoas.
O partido que era guardião da ética na política institucionalizou o descambo no trato da coisa pública; os líderes de esquerda, que foram perseguidos, calados e até exilados pela ditadura, demonstraram um gosto pelo autoritarismo, uma repulsa voraz às críticas e uma tendência incontida a coibir a liberdade de imprensa; o partido que tanto denunciou as maracutaias e negociatas envolvendo a máquina estatal foi o que mais aparelhou órgãos públicos, sempre com quadros do partido, mas quase nunca com a capacitação profissional e com a lisura moral adequadas a esses cargos.
Na cabeça do eleitor sobrou a confusão. Os papéis foram trocados, e não ficou muito claro para o cidadão comum se a oposição de hoje (o PSDB) era mesmo tão cruel e malvada - ainda para mantermos a linha de raciocínio maniqueísta - quanto a propaganda petista tentou mostrar em 2006. E o pobre eleitor consegue, muito menos, entender o que moveu o partido no qual depositara sua esperança em 2002 ao descambo de maneira tão acintosa, e ainda bancar o santo inocente no horário eleitoral gratuito.
Como disse no início, não sou cientista político, nem sociolólogo, mas vejo nessa troca ou confusão de papéis o risco da tentação de se buscar uma solução populista, já que o debate ideológico e político deu lugar à discussão do assistencialismo, da inclusão, da distribuição de renda, das políticas sociais e só.
Não importa ao eleitor que a contrapartida dessas políticas sociais seja fazer vistas grossas às questões éticas, seja entender como natural os desmandos que no passado nos indignaram. A incompetência da oposição em levantar o debate aprofundado - provavelmente também por despreparo, medo de cobranças pelo período em que foi governo ou receio de não ter condições de enfrentar uma discussão de idéias de fato transformadoras - também chama a atenção.
Um comentarista político, dia desses, definiu o PT e o PSDB atuais como primos, com pequenas diferenças de fato entre eles. Mas que, por diversas razões, se julgam inimigos mortais, e fazem dessa rivalidade sua razão de existir. Mal comparando, é como se fossem israelenses e árabes.
O problema é que, nessa disputa cega, os reais interesses do Brasil e do povo sejam esquecidos. A necessidade de mudanças estruturais e de fato transformadoras da sociedade acaba substituída por um ilusionismo de números e feitos pseudo relevantes. De ambas as partes. E pior, com o aval de intelectuais importantes, principalmente do lado petista, que seguem com o discurso da diferença ideológica histórica, do fato de o partido ser "de esquerda". Mas, de novo, nenhum deles consegue explicar o apoio recebido de figuras como Delfim Netto e Paulo Maluf.
Para encerrar, publico outra charge tirada do livro "Aos Trancos e Barrancos", que ilustra bem o nível de debate que estamos tendo atualmente. (Em tempo: a charge é de 1980.)