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17 setembro 2006

O velho pintor

Era um velho pintor japonês, que ia completar 88 anos e morava num bairro de classe média paulistano, sem qualquer glamour. Fui entrevistá-lo por conta de uma matéria especial sobre os festejos dos 80 anos de imigração japonesa no Brasil – e ele era o único sobrevivente do primeiro navio que desembarcou ja­po­ne­ses no início do século 20 no porto de Santos.

A casa era modesta. Um sobrado; dois, no máximo três quartos. A sala tinha uma estante com televisão, três-em-um e alguns bibelôs ja­poneses (nem sei se aqueles bonequinhos redondos podem ser chamados de bibelôs), um sofá de couro ar­ti­ficial surrado, uma escada junto à pa­rede estilo anos setenta, com aque­les ferros coloridos que vão do piso de cada degrau ao teto. Ao lado, um corredor que levava à cozinha.

Nas paredes, muitos de seus quadros. O ateliê ficava no quar­tinho dos fundos, mas não me levou até lá, por causa da bagunça. Mos­trou-me os exemplares pendurados na sala e as reproduções de um li­vro publicado duas décadas antes por uma associação beneficente da co­­munidade japonesa. Suas telas retratavam o trabalho na lavoura, o nas­cer e pôr-do-sol no centro-oeste paulista, a vida nas colônias agrí­co­las, os rostos com olhos puxados cheios de tristeza e desilusão.

Ele falava com um forte sotaque, apesar dos 80 anos morando no Brasil. Falou-me de poucas lembranças daquela época. As pinturas eram mais influência das histórias de seus pais e tios do que re­mi­niscências próprias. Tinha menos de oito anos quando chegou a esta ter­ra em que as pessoas não possuíam pele amarela, nem olhos pu­xa­dos, e não entendiam sua língua. Comiam um arroz esquisito e tinham hábitos bem diferentes dos da sua gente. Não lembrava quanto tempo custou a aprender a língua dos gaigins, mas lembrava que, junto com ela, aprendera a jogar bola e a torcer pelo Marília Atlético Clube.

Apesar do sofrimento dos pais na lavoura de café, e talvez jus­tamente por isso, teve sua infância preservada e amava o time do MAC.

Suas telas retratam também a vida na cidade interiorana nos anos 40 e o rosto sempre lindo da mulher amada. Não importa se ela realmente é bonita; importa como você a vê. Se for com amor, ela pa­recerá a mais bela do mundo no retrato, ensina o mestre.

A musa de olhos puxados aparece nas telas na flor da juventude; mulher feita na janela da casa; mãe protetora dos filhos; mulher ma­dura passeando por um bosque; e como uma velha repleta de sabedoria e dignidade. Os olhos dele marejavam ao ver no livro os re­tratos da mu­­­lher. Lá se iam quase dez anos sem ela, mas não sem sua lem­bran­ça, todos os dias, até o fim da vida, como ambos haviam prometido um ao outro. Deus quis que coubesse a ele cumprir a promessa.

Nas paredes não vi nenhum retrato dela. Ele percebeu o meu re­pa­­ro, mas não comentou nada – e eu não perguntei, em respeito ao sen­­timento dele. O velho pintor encerrou o assunto com a frase: “Quando se ama, a vi­da ganha sentido”.

O sábio pintor resumia sua vida como uma escada com infinitos degraus, que se sobe diariamente. Quando se é jovem, tem-se a impressão de que se pode pular de dois em dois, ou de três em três degraus, para se chegar mais rapidamente ao topo. “Ah, o topo...”, suspirou. Mas quando se está velho, aprende-se que cada degrau tem a sua importância para a escadaria e que, se você pular um sequer, o conhecimento daquele pode vir a fazer falta quando se estiver lá em cima – e então pode-se levar um enorme tombo.

Além disso, sua escada sobe em paralelo a várias outras, por on­de passam outras pessoas, mais novas ou mais velhas. E essas sempre podem lhe ensinar alguma coisa ou aprender algo com você. “Eu tenho um novo amigo de 18 anos que vem três vezes por semana me ensinar a mexer no computador”, disse-me. O velho pintor não sabia se teria ou não tempo de usar esse conhecimento, mas julgou que precisava aprender e estava aprendendo.

Enquanto fazia as anotações para a matéria, fiquei olhando-o com profunda admiração. Ele contou que vol­tou uma única vez ao Japão, já com quarenta anos, e teve a sen­sa­ção de que sua verdadeira pátria ficava do lado de cá do planeta.

Eu continuei a admirá-lo. Eu que nunca tive o dom do desenho, que não emigrei com minha família para um país estranho, que não so­fri o preconceito por ter uma pele e os olhos diferentes dos moradres des­se país. Eu que apenas tinha como ofício coletar e relatar aos ou­tros informações, estava diante de uma esplêndida lição de vida.

Um ano mais tarde, li uma notinha de jornal dizendo que o último dos imigrantes pioneiros japoneses havia morrido. Lem­brei-me de sua casa, de seu jeito de falar, de seus quadros, de sua mu­sa. Em vez de chorar por ele, co­me­­cei a prestar mais atenção a cada degrau da minha escada.

Renato Delmanto