Meios de comunicação e hegemonia meia-sola
Artigo de Maria Inês Nassif, publicado no Valor Econômico (07/12/2006)
Embora a mídia tenha se exposto particularmente nas eleições deste ano, o papel que desempenhou neste processo eleitoral guarda muita semelhança com o exercido em 2002. Em ambas as eleições a imprensa impulsionou e acirrou um processo de radicalização já em curso. Em quatro anos, e após um mandato que, na gestão econômica, rezou quase inteiramente pela cartilha ortodoxa, mudaram os instrumentos de pressão eleitoral, mas nas duas eleições, sem dúvida, os jornais foram fundamentalmente mediadores das pressões de setores sociais sobre os candidatos e de amplificadores de conflitos latentes. Nos dois casos, todavia, revelaram alcance limitado no convencimento do eleitor.
Em 2002, os jornais, ao amplificarem as "expectativas" dos mercados em relação ao candidato petista, Luiz Inácio Lula da Silva, não apenas reproduziram fatos, mas os produziram. Foi um processo de retroalimentação que consistia em supervalorizar reações dos mercados em relação ao programa e às menores declarações de Lula e de petistas que pretensamente teriam influência sobre um eventual governo petista. Era um movimento em que o fato político era levado ao mercado e o mercado era introduzido no cenário político de forma contínua - e os movimentos de mercado eram usados eleitoralmente (era o "efeito Lula", ou a máxima "Serra ou o caos") e os fatos eleitorais consistiram num pretexto em torno do qual grandes movimentos especulativos foram feitos. O país quase foi ao corner.
O maior efeito obtido pelos jornais, nessa lógica onde a amplificação do fato produz outro fato de maior intensidade, foi o de pressão direta sobre o candidato petista para adequar o seu programa de governo ao tripé neoliberal do então ministro Pedro Malan, ele próprio porta-voz dos interesses do mercado financeiro (e cujas declarações eram valorizadíssimas nos noticiários) - metas de inflação, câmbio flutuante e superávits fiscais. No último dia de junho, antes mesmo de oficializar sua candidatura, Lula divulgou a "Carta ao Povo Brasileiro", onde rezava e se comprometia com as premissas do mercado para a "boa governança". Ainda assim, o uso eleitoral do mercado - e o uso pelo mercado do fato eleitoral - se estendeu por todo o período de campanha. Se já havia dado resultados como instrumento ideológico do mercado antes mesmo da oficialização das candidaturas, a mídia, na sua função de mediadora das pressões, no processo eleitoral certamente se prestou apenas ao objetivo político-partidário.
Nessas eleições, o processo de radicalização em curso era político e social. O confronto ideológico foi despido das pressões de mercado, atenuadas pelos quase quatro anos de política econômica do governo Lula. A imprensa lidou com o claro descolamento entre voto e a "opinião pública" sobre a qual, imaginava, teria influência - que, diga-se de passagem, já era marginal nas eleições de 2002 - aprofundando a sua estratégia de amplificar conflitos. Embora essa estratégia tenha obtido limitado efeito eleitoral, certamente teve a função de radicalização ideológica que ocorreu no período eleitoral.
Jornais e elite falaram para si mesmos nas eleições
O descolamento entre os chamados "formadores de opinião" e o voto de uma forma radical não foi percebido pela mídia, quer porque foi subdimensionado um processo social em marcha, quer porque os meios de comunicação e as elites brasileiras estavam convencidas de uma hegemonia ideológica do período anterior que era, na verdade, uma hegemonia restrita a alguns setores sociais. A hegemonia do impulso "modernizador" nos períodos Collor e Fernando Henrique Cardoso - que passava pela abertura de um país culturalmente fechado ao exterior - pode até ter se expandido para as classes mais pobres quando planos econômicos provocaram "lapsos" redistributivos de renda, mas os efeitos foram curtos - e o "Brasil moderno", desregulado, com Estado mínimo, convenha-se, tem uma atratividade restrita para a maioria da população, que tem problemas de sobrevivência imediatos a resolver.
Acontece que esse pensamento foi hegemônico nos meios de comunicação e junto às elites entre as quais esses meios circulam - e formam opiniões - de tal forma que foi concebido como hegemônico para todas as classes sociais - era a "verdade", a "racionalidade" que havia subjugado e trazido das trevas uma imensa população analfabeta que, enfim, se rendia às evidências de que o senhor mercado tudo podia, e de que o Estado era um mal a ser minimizado. A generalização do alcance dessa "verdade" pode ser atribuída ao fato de que historicamente o pensamento hegemônico das elites foi imposto sem nenhum esforço de convencimento - ou sem nenhuma compensação - às classes de menor renda. Nessas duas últimas eleições presidenciais, no entanto, os jornais e as elites falaram para si mesmos.
Quando há um movimento ideológico, não interessa a intenção dos atores políticos, mas a função que eles desempenham no processo. A intenção, neste caso, pode ter sido ofuscada por uma ideologia impregnada da convicção de que a "racionalidade" era a "verdade". Nos idos de 2002, um economista que escrevia assiduamente para um jornal diário expressava claramente isso: quem está com o mercado é moderno, segundo sua reflexão; o "atraso" era superado e por isso o candidato José Serra seria vitorioso ou Lula seria submetido às forças da "racionalidade". E estava superado porque o povo assim havia demonstrado em duas eleições anteriores, cujas campanhas - e governos - se pautaram por temas "racionais". Se ainda assim o povo não tivesse juízo, a "racionalidade" dos governos anteriores, que abriram o mercado financeiro, inocularam o país com o vírus da modernidade: os agentes do mercado eram, definitivamente, o freio à "irracionalidade" que impulsionaria qualquer governo na direção contrária de "voluntarismos" e "populismos". O raciocínio era o seguinte: Lula não venceria porque o eleitor havia se curvado à racionalidade; se ainda assim vencesse, o eleitor o conteria se quisesse fazer um governo "irresponsável" porque, enfim, o povo sabia quão bem fazia ao país a "racionalidade"; se ainda assim o eleitor não tivesse juízo, o mercado financeiro pressionaria o governo petista para que seguisse os axiomas da "verdade" da "boa governança".
Embora a mídia tenha se exposto particularmente nas eleições deste ano, o papel que desempenhou neste processo eleitoral guarda muita semelhança com o exercido em 2002. Em ambas as eleições a imprensa impulsionou e acirrou um processo de radicalização já em curso. Em quatro anos, e após um mandato que, na gestão econômica, rezou quase inteiramente pela cartilha ortodoxa, mudaram os instrumentos de pressão eleitoral, mas nas duas eleições, sem dúvida, os jornais foram fundamentalmente mediadores das pressões de setores sociais sobre os candidatos e de amplificadores de conflitos latentes. Nos dois casos, todavia, revelaram alcance limitado no convencimento do eleitor.
Em 2002, os jornais, ao amplificarem as "expectativas" dos mercados em relação ao candidato petista, Luiz Inácio Lula da Silva, não apenas reproduziram fatos, mas os produziram. Foi um processo de retroalimentação que consistia em supervalorizar reações dos mercados em relação ao programa e às menores declarações de Lula e de petistas que pretensamente teriam influência sobre um eventual governo petista. Era um movimento em que o fato político era levado ao mercado e o mercado era introduzido no cenário político de forma contínua - e os movimentos de mercado eram usados eleitoralmente (era o "efeito Lula", ou a máxima "Serra ou o caos") e os fatos eleitorais consistiram num pretexto em torno do qual grandes movimentos especulativos foram feitos. O país quase foi ao corner.
O maior efeito obtido pelos jornais, nessa lógica onde a amplificação do fato produz outro fato de maior intensidade, foi o de pressão direta sobre o candidato petista para adequar o seu programa de governo ao tripé neoliberal do então ministro Pedro Malan, ele próprio porta-voz dos interesses do mercado financeiro (e cujas declarações eram valorizadíssimas nos noticiários) - metas de inflação, câmbio flutuante e superávits fiscais. No último dia de junho, antes mesmo de oficializar sua candidatura, Lula divulgou a "Carta ao Povo Brasileiro", onde rezava e se comprometia com as premissas do mercado para a "boa governança". Ainda assim, o uso eleitoral do mercado - e o uso pelo mercado do fato eleitoral - se estendeu por todo o período de campanha. Se já havia dado resultados como instrumento ideológico do mercado antes mesmo da oficialização das candidaturas, a mídia, na sua função de mediadora das pressões, no processo eleitoral certamente se prestou apenas ao objetivo político-partidário.
Nessas eleições, o processo de radicalização em curso era político e social. O confronto ideológico foi despido das pressões de mercado, atenuadas pelos quase quatro anos de política econômica do governo Lula. A imprensa lidou com o claro descolamento entre voto e a "opinião pública" sobre a qual, imaginava, teria influência - que, diga-se de passagem, já era marginal nas eleições de 2002 - aprofundando a sua estratégia de amplificar conflitos. Embora essa estratégia tenha obtido limitado efeito eleitoral, certamente teve a função de radicalização ideológica que ocorreu no período eleitoral.
Jornais e elite falaram para si mesmos nas eleições
O descolamento entre os chamados "formadores de opinião" e o voto de uma forma radical não foi percebido pela mídia, quer porque foi subdimensionado um processo social em marcha, quer porque os meios de comunicação e as elites brasileiras estavam convencidas de uma hegemonia ideológica do período anterior que era, na verdade, uma hegemonia restrita a alguns setores sociais. A hegemonia do impulso "modernizador" nos períodos Collor e Fernando Henrique Cardoso - que passava pela abertura de um país culturalmente fechado ao exterior - pode até ter se expandido para as classes mais pobres quando planos econômicos provocaram "lapsos" redistributivos de renda, mas os efeitos foram curtos - e o "Brasil moderno", desregulado, com Estado mínimo, convenha-se, tem uma atratividade restrita para a maioria da população, que tem problemas de sobrevivência imediatos a resolver.
Acontece que esse pensamento foi hegemônico nos meios de comunicação e junto às elites entre as quais esses meios circulam - e formam opiniões - de tal forma que foi concebido como hegemônico para todas as classes sociais - era a "verdade", a "racionalidade" que havia subjugado e trazido das trevas uma imensa população analfabeta que, enfim, se rendia às evidências de que o senhor mercado tudo podia, e de que o Estado era um mal a ser minimizado. A generalização do alcance dessa "verdade" pode ser atribuída ao fato de que historicamente o pensamento hegemônico das elites foi imposto sem nenhum esforço de convencimento - ou sem nenhuma compensação - às classes de menor renda. Nessas duas últimas eleições presidenciais, no entanto, os jornais e as elites falaram para si mesmos.
Quando há um movimento ideológico, não interessa a intenção dos atores políticos, mas a função que eles desempenham no processo. A intenção, neste caso, pode ter sido ofuscada por uma ideologia impregnada da convicção de que a "racionalidade" era a "verdade". Nos idos de 2002, um economista que escrevia assiduamente para um jornal diário expressava claramente isso: quem está com o mercado é moderno, segundo sua reflexão; o "atraso" era superado e por isso o candidato José Serra seria vitorioso ou Lula seria submetido às forças da "racionalidade". E estava superado porque o povo assim havia demonstrado em duas eleições anteriores, cujas campanhas - e governos - se pautaram por temas "racionais". Se ainda assim o povo não tivesse juízo, a "racionalidade" dos governos anteriores, que abriram o mercado financeiro, inocularam o país com o vírus da modernidade: os agentes do mercado eram, definitivamente, o freio à "irracionalidade" que impulsionaria qualquer governo na direção contrária de "voluntarismos" e "populismos". O raciocínio era o seguinte: Lula não venceria porque o eleitor havia se curvado à racionalidade; se ainda assim vencesse, o eleitor o conteria se quisesse fazer um governo "irresponsável" porque, enfim, o povo sabia quão bem fazia ao país a "racionalidade"; se ainda assim o eleitor não tivesse juízo, o mercado financeiro pressionaria o governo petista para que seguisse os axiomas da "verdade" da "boa governança".
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